Eu?... Passarinho!

 




A  imagem  da capa do livro  de  Mario Quintana cima   citada neste texto não faz parte da matéria original aqui compartilhada,  ela aqui é meramente ilustrativa 

 
 

Alguns dos meus textos podem, equivocadamente, passar a ideia de que sou um predador, alguém que não respeita ou que estimula o desrespeito à natureza. Na verdade, o caiçara sempre foi quem mais preservou a Mata Atlântica. A historiadora Kilza Setti é também dessa opinião. O litoral começou a sofrer depredações ambientais quando o caiçara vendeu suas terras e os novos proprietários as transformaram em loteamentos. Essa ocupação horizontal do solo acabou com as árvores frutíferas que havia em toda propriedade caiçara.

A partir desta época do ano, em que a temperatura na Serra do Mar começa a cair vertiginosamente, a maioria das espécies da fauna descia para as várzeas, para lugares mais quentes onde podia encontrar bananeiras e uma imensa variedade de arbustos e árvores frutíferas nos quintais, na planície perto dos rios e do mar: araçazeiros, goiabeiras, cajueiros, laranjeiras, jabuticabeiras, mamoeiros, ameixeiras etc. Os loteamentos não deixaram nada de pé. Hoje os pássaros silvestres estão invadindo as zonas urbanas em busca de alimentos, mas as casas já não têm quintais e pomares como antigamente.

Outro dia, passando de carro com meu filho pela praia das Toninhas [Ubatuba - SP], lembrei-me das vezes em que ficava hospedado na casa do Plínio, um amigo de infância. Contei a meu filho como eram esses lugares à beira mar naquela época. Não havia energia elétrica, nem rodovia. À noite, a Via Láctea despudorada deixava o céu empanturrado de estrelas. Era quase possível tocá-las com a ponta dos dedos. O branco do chão de areia do terreiro contrastava com o contorno da vegetação oculta pela escuridão onde brincavam centenas de vaga-lumes enquanto o mar executava sua sinfonia na areia da praia e nas pedras da costeira. O amanhecer era marcado pelo cheiro do café coado em coador de pano. Revelava-se, em seguida, ao som do martelar das arapongas na mata, o cenário dos cajueiros, aroeiras, goiabeiras, mamoeiros, mexeriqueiras, araçaeiros no entorno da pequena casa de paredes de taipa e o festim da passarinhada nessas espécies frutíferas.

Já cacei passarinhos. Já os prendi em gaiolas. Confesso. Mas isso foi coisa dos tempos de adolescência. Depois essas coisas perderam o sentido, os tempos mudaram. Caçar e pescar, aos poucos foram deixando de fazer parte da vida, da cultura caiçara. O próprio caiçara foi deixando de ser, de existir. Hoje, dependuro bananas no pequeno quintal de casa para algumas saíras, sanhaços, tiés, periquitos e tiribas que me visitam nesta época do ano.

Às vezes, aqui no O Guaruçá, brinco com o amigo Carlos Rizzo, mas devo dizer que reconheço o brilhante trabalho que ele até agora vem executando e que entendo fundamental para a conscientização das pessoas, no intuito de preservar aves e pássaros silvestres. Arrisco-me até a sugerir que, em vez de árvores ornamentais, plantemos espécies frutíferas em todos os lugares possíveis no âmbito de nosso município, e encerro com estes versos do Poeta Mario Quintana: Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão. / Eu passarinho!


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi

FONTE   SITE    ubaweb.com

Comentários